Pan-africanismo é tema de debate no Seminário da Diáspora Africana nas Américas no campus dos Malês
Seminário propôs instrumentalizar representantes da Unilab que irão participar na Conferência Regional da Diáspora Africana nas Américas, evento que acontece em agosto, em Salvador (BA)
O tema A universidade pública no debate pan-africanista sobre memória, restituição, reparação e reconstrução esteve no centro do debate e diálogo durante o Seminário da Diáspora Africana nas Américas, evento realizado na última quinta-feira (22/08), no campus dos Malês, pela Secretaria de Promoção Racial e de Povos e Comunidades Tradicionais da Bahia (Sepromi), em parceria com a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)/campus dos Malês. O evento reuniu comunidade acadêmica da Unilab, pesquisadores, representantes da sociedade civil, de movimentos sociais e de órgãos do Estado articulados a essas temáticas.
Por meio de debates e reflexões de pautas coletivas, o Seminário propôs instrumentalizar representantes da Unilab que irão participar na Conferência da Diáspora Africana nas Américas, evento que acontece em agosto, em Salvador (BA) e é organizado pelos Ministérios das Relações Exteriores e da Igualdade Racial, em parceria com o governo do Estado da Bahia. Essa Conferência, por sua vez, é uma etapa preparatória para o 9º Congresso Pan-Africano, que ocorrerá no Togo, entre os meses de outubro e novembro de 2024 e terá como tema Renovação do Pan-Africanismo e o Papel da África na Governança Global: Mobilizar Recursos e Reinventar-se para Agir.
“Esse seminário tem sido realizado pela Sepromi por entender a importância de envolver estudantes, professores, pesquisadores e pessoas do movimento negro nessa discussão para a construção da Conferência que vai mobilizar nações em torno dos temas do Congresso Pan-Africano”, apontou Mércia Porto Barata, superintendente de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Sepromi.“Entendemos que a Unilab é nossa parceira”, acrescentou.
A pró-reitora de Relações Internacionais e Institucionais da Unilab, Artemisa Monteiro, na mesa institucional, destacou a importância da inserção da Universidade na Conferência da Diáspora Africana nas Américas e lembrou que a Unilab teve como um de seus pilares de justificativa para sua criação a justiça restaurativa para os países africanos. “Quando esse processo da diáspora africana é marcada por fluxos de pessoas e culturas, através de encontro de diversas sociedades, nós entendemos que a diáspora brasileira, também chamada de diáspora africana, tem muito a contribuir para o continente africano”, afirmou.
O reconhecimento do papel e da importância da Unilab como um centro – e uma das referências – para os debates que vão ser levados à Conferência também foi destacado pela diretora do campus dos Malês da Unilab Mírian Reis. “O que a gente faz na Unilab é descentralizar uma lógica do conhecimento científico em que nós, sujeitos negros, éramos tidos como objetos de estudo. O que acontece aqui é uma agência, a gente toma a palavra, a produção do saber científico e restaura memórias que foram silenciadas e apagadas e reescreve essas histórias a partir de uma perspectiva afrocentrada”, disse. Ela sublinhou ainda que o Seminário tem a proposta de apoiar os representantes da Unilab na Conferência, para que possam levar pautas da comunidade, construídas coletivamente.
Também integraram a mesa institucional do Seminário a discente Josefa Lopes, representante da Associação de Estudantes Africanos e Amigos de África (ASEA); Leila Machado, assistente social da Seção de Políticas Estudantis do campus dos Malês (SEPE); Eliane Gonçalves, diretora do Instituto de Humanidades e Letras (IHL/Malês); major Jalba Santiago dos Santos, representante do comando geral da Polícia Militar da Bahia; e o reitor da Unilab, Roque Albuquerque que, de forma virtual, declarou a apoio à inserção da Universidade/campus dos Malês nesses fóruns de debates e diálogos.
Roda de conversa – Pan-africanismo
Na roda de conversas do Seminário, o integrante da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen) Gilberto Leal trouxe um histórico de marcos em torno do pan-africanismo que, conforme aponta, tem um legado de ter sido construído durante um período de quase meio século desde a Conferência de Paris, em 1919, até a 5ª Conferência em Manchester, na Inglaterra, em 1945. “Foi uma construção forte que atravessou oceano, para implantar a semente da libertação da África”, pontua.
Leal também contextualiza que no pan-africanismo, apesar de suas linhas de pensamento divergentes, criou-se uma união que resultou, em 1963, na Organização da Unidade Africana (OUA), hoje, denominada União Africana. “Fala-se muito na sexta região, que não foi inspiração da União Africana, mas vem desde 1970, quando Kwame Nkrumah, no seu livro Lutas de classe na África, dizia que todos os negros e negras nascidos em qualquer parte do mundo pertenciam ao continente africano”, explica.
Ele ressaltou também o fato de já existirem diversas ações pan-africanas – a exemplo da luta da população haitiana pela independência -, no entanto sem essa denominação “pan-africanismo”, criada por Silvester Williams, na Conferência de Londres.“Eu diria, para ser mais ousado, que muito antes à luta do Haiti, que a luta de Palmares, que durou 100 anos de resistência, foi uma luta pan-africanista também, ou seja, estamos intitulando o pan-africanismo, segundo a filosofia Sankofa, a partir de um olhar para o passado, para entender o presente e projetar o futuro”, afirma Leal.
Epistemologias afrocêntricas e movimentos afrocentrados
Para o docente congolês da Unilab Bas´llele Malomalo, o pan-africanismo tem relação também com a vontade de liberdade da escravidão e da colonização, por parte dos povos africanos. “Esse movimento de liberdade nasce antes de você conceituar o pan-africanismo, que tem ponto em comum que é a totalidade, é o movimento que busca agregar pessoas africanas para uma luta comum”, explica. Ele cita, nesse contexto, movimentos de ancestrais no Iraque, no século 10, a partir de rebelião de pessoas africanas e, ainda, o Movimento dos Malês.
O docente também sublinha que as agendas das conferências pan-africanistas são arenas de disputa, sobre as quais precisa-se de um olhar atento para essa multiplicidade de forças. E lembra que, em 1945, foram mulheres negras norte-americanas que financiaram o congresso dessa época. Malomalo destaca ainda que existem movimentos como a mitologia Kemet que, segundo ele, são mais afrocentrados que o pan-africanismo. Ele tece críticas à ideia do berço dos conhecimentos na Europa, a exemplo das Ciências Sociais e Sociologia, cujas origens, segundo aponta, estão no continente africano. O docente pontua que no próximo Congresso Pan-Africano – no qual será um dos representantes da Unilab -, uma das pautas que podem ser levadas ao debate é “até que ponto os currículos das universidades são afrocentrados?”, questiona.
Mulheres nos debates sobre pan-africanismo
Na roda de conversa, o professor da Unilab Pedro Leyva sublinhou a importância feminina no surgimento do pan-africanismo, a exemplo da participação de Amy Garvey que trouxe a “questão da mulher” durante o Congresso Pan-Africano de 1945. Sobre a conceituação, segundo Leyva, o “pan-africanismo é humanidade, porque estamos falando de uma emancipação do homem e da mulher preta para avançar como civilização”, disse.
Um ponto que Leyva acredita que deva ser levado à Conferência que acontece em Salvador – do qual também é um dos representantes pela Unilab – é a união entre universidades com linhas convergentes ao pan-africanismo. “O estado brasileiro tem que fortalecer essa ideia da continuidade da relação de cooperação entre a Universidade Pan-africana, criada e financiada pela União Africana, e a Unilab, financiada pelo governo brasileiro”, aponta.
Consciência histórica e política
A docente cabo-verdiana da Unilab Rutte Tavares propõe pensar o pan-africansimo não somente na sua dimensão secular – considerando os processos históricos como a colonização e a escravidão – mas também a partir de fenômenos como o racismo estrutural. “Para nós, enquanto comunidade preta, é importante fazer esse movimento Sankofa de pensarmos o pan-africanismo na sua dimensão milenar, porque quando observamos o final do século 19 e o século 20, as contribuições importantes de entidades africanas e das diásporas para a consolidação do pan-africanismo, vamos pensar todos os processos de lutas para libertação dos países africanos, pensar a própria diáspora. É relevante a reconstrução ou a construção da nossa consciência histórica”, afirmou.
Ela também destaca o compromisso do Brasil e da Unilab de formar consciências, a massa crítica, entidades- sujeitos, homens e mulheres com essa consciência histórica. Andrade aponta ainda para a importância da formação de consciência política, “de nos conectarmos com nossas comunidades nesse território, por exemplo, que é o Brasil, que demanda da nossa parte o desafio de nos aquilombarmos, mas também esse compromisso de retorno às nossas nações e nossos países. Portanto, somar para oferecer também as nossas forças nos movimentos de libertação que se encontram no processo de construção”, afirma. A docente pontuou também a importância de se pensar os recursos disponíveis e as condições que estão sendo oferecidas à comunidade da Unilab, para que se possam gerir iniciativas e ações com autonomia.
Memória da população negra
Reflexões sobre caminhos para a construção da consciência pública sobre a memória da população negra foram trazidas, durante a roda de conversa, pelo assessor de Relações Internacionais da Sepromi Flavio Franco.”A restituição da memória é importante para nós porque perpassa um processo da garantia da dignificação humana de nós negros e negras; da garantia de nossos direitos fundamentais, na forma de assegurar o estado democrático de direitos”, disse. Ele cita que no imaginário mundial, global, tem-se estabelecido, por exemplo, a memória do holocausto e a memória dos judeus, que perpassa por um pacto da branquitude.
Franco cita outro exemplo, como a demarcação do estado islâmico enquanto grande ator terrorista, em um contexto de confronto com a branquitude e os Estados do Norte global. No âmbito das Relações Internacionais e global, ele aponta também para alguns espaços importantes na construção do movimento pan-africanista para o resgate da memória, restituição e da reparação, como o Fórum de afrodescendentes da ONU. Também destaca o papel das universidades nesse processo. “A universidade como espaço de formação, de difusão e produção de conhecimento – e também como interlocutora da sociedade civil a partir de suas atividades extensionistas – pode ajudar nesse processo de reconstrução da memória e restituição dos direitos fundamentais a partir da consciência pública da memória da população negra no nosso país, mas também a nível global”, afirma.