Reitora e vice-reitor da Unilab assinam artigo sobre racismo no Jornal O Povo
Negociação e conflito *
“Apesar de mudanças significativas, ainda convivemos com a ambiguidade do racismo brasileiro. O racismo do “sim” e do “não” – um discurso velado na intimidade dos indivíduos e um conjunto de práticas que se escondem atrás de uma falsa democracia racial.
É inegável que o Brasil é um país marcado por uma complexa diversidade cultural, social, étnico-racial e por uma ampla desigualdade econômica. Nos últimos dez anos, a discussão sobre essa intensa diversidade tem se tornado mais visível no debate público, na arena política e na implementação de políticas que visam garantir os direitos sociais a todos os cidadãos, contemplando a trajetória e a vivência dos coletivos sociais diversos.
Todavia, embora reconheçamos os recentes avanços da articulação entre democracia, igualdade social e diversidade, lamentavelmente ainda convivemos, em nossa sociedade, com limites e desigualdades históricas quando refletimos sobre a garantia plena dos direitos sociais e humanos aos coletivos sociais considerados diversos: indígenas, negros, quilombolas, povos do campo, os marginalizados nas grandes cidades, população LGBTT, pessoas com deficiência, mulheres, entre outros.
Essa situação exige a forte intervenção dos movimentos sociais agindo na denúncia das situações de racismo, sexismo, homofobia, preconceito e formas correlatas de discriminação que atingem a população e exigem do Estado e da sociedade brasileira como um todo ações concretas, políticas públicas que contemplem o direito à diferença e a correção de desigualdades. Em paralelo, esses mesmos grupos sociais, em sua práxis, instauram processos históricos de negociação e conflito, construindo mecanismos de resistência e consciência sobre a necessidade dessa ação. Os movimentos sociais reeducam a sociedade e a si mesmos sobre a complexa imbricação entre a desigualdade socioeconômica e as desigualdades raciais, étnicas, de gênero e de diversidade sexual.
É nesse contexto que se localiza a luta histórica do movimento negro brasileiro. Fruto da resistência pela libertação dos africanos e afrodescendentes escravizados, pela organização dos quilombos, pela manutenção das irmandades negras e pelos terreiros e das diversas formas de organização das negras e negros em nosso país, o movimento negro brasileiro atua como elemento político que denuncia o racismo e anuncia ser possível a construção de uma outra sociedade. Nesta, os diferentes grupos étnico-raciais poderão viver em condições de igualdade social e de dignidade humana.
Vivemos, ultimamente, efeitos diretos e indiretos da ação do movimento negro no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial, sobretudo, através das organizações constituídas no final dos anos 70, graças ao processo de redemocratização política da nossa sociedade. A denúncia das situações de racismo, discriminação, desigualdade e exclusão que afetam a população negra brasileira na saúde, educação, acesso ao ensino superior, mercado de trabalho, ocupação de cargos de poder e decisão, nos partidos políticos e demais setores sociais, hoje, fazem parte dos processos democráticos de organização social, econômica, política, educacional e jurídica da nossa sociedade. Temos, hoje, na educação básica, a obrigatoriedade de inserção do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, resultado da alteração da LDB pela Lei 10.639/03. Aprovado pelo congresso nacional, já em vigor, podemos encontrar o Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288/2010. O Supremo Tribunal Federal aprovou em 26/04/2012 a constitucionalidade do princípio das ações afirmativas e, a partir desse ano, as instituições federais de educação superior são instadas a implementar a Lei de Cotas para estudantes de escola pública, baixa-renda, negros e indígenas.
São ações, políticas e mudanças afirmativas no país que decorrem de um reconhecimento da luta anti-racista como integrante da construção da democracia. Um novo entendimento de que democracia em um país tão diverso só poderá ter bom êxito se for articulada com políticas e práticas que visem à equidade.
Compreendemos que ainda existe muito a avançar. Apesar das significativas mudanças ainda convivemos com a ambigüidade do racismo brasileiro. O racismo do “sim” e do “não”. O discurso velado na intimidade dos indivíduos, na negação do problema a ser enfrentado nos faz ainda identificar práticas que se escondem atrás de uma falsa democracia racial e, por conta disso, o mito da igualdade redefinido através de um discurso romântico da nossa complexa diversidade.
Desmistificar mitos e discursos sobre a presença e a força afro-brasileira e africana são tarefas de todos nós, não somente do movimento negro. É também uma tarefa educativa das instituições de ensino, da educação básica a superior. É nesse contexto que se realiza a experiência acadêmico-política da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB. Acreditamos que a experiência de cooperação Sul-Sul entre o Brasil e os países de línguas de expressão portuguesa, em especial os africanos, amplia e aprofunda a vocação democrática da universidade pública. Aos poucos, no seu processo de instalação e consolidação, a Unilab vem revelando que excelência acadêmica, equidade, cooperação solidária e uma postura político-acadêmica de superação do racismo são perfeitamente possíveis e necessárias para a construção da universidade do século XXI e, assim, institucionalmente, nos alinharmos contribuindo com as lutas e resistências da sociedade organizada”.
Nilma Lino Gomes (reitora) e Fernando Afonso Ferreira Junior (vice-reitor) – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)
*Artigo publicado no Caderno Vida e Arte do Jornal O Povo no dia 14 de abril de 2013.