[Entrevista] Matilde Ribeiro: professora, assistente social, gestora pública e ícone do movimento negro.
Neste ano, a professora é a homenageada do V As Pretas na Unilab durante o “Julho das Pretas”, agenda organizada nacionalmente pelos movimentos de mulheres negras.
Confira entrevista completa.
25 de Julho é data carregada por simbolismos caros ao movimento negro, de mulheres, e à sociedade como um todo: é quando se afirma o Dia Internacional da Mulher Afro-latino-americana e caribenha (reconhecido pela Organização das Nações Unidas, a ONU) e o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.
No Brasil, o marco histórico foi sancionado pela Lei nº 12.987/2014 e instituiu, na pessoa de Tereza de Benguela, líder, no século XVIII, do Quilombo Quariterê (resistente à escravidão por mais de duas décadas), a figura política que traduziria a resistência para toda uma população.
A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) tem a honra de contar com ícones nacionais e internacionais em seus quadros. Neste ano, a professora Matilde Ribeiro é a homenageada pela quinta edição do “As Pretas na Unilab – Encontro de Mulheres Afrolatino-americanas, Caribenhas e Africanas”, seminário anual organizado pelo grupo de extensão “Sobre o Corpo Feminino – Literaturas africanas e afro-brasileiras”. No mês de maio, Matilde também recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do ABC Paulista (UFABC).
A Secretaria de Comunicação Institucional da Unilab (Secom) realizou, na última semana, uma entrevista com a professora, que é vinculada ao Instituto de Humanidades e Letras, do Campus dos Malês (BA), do qual já foi diretora. Matilde nasceu em Flórida Paulista (SP) na década de 60, completando 61 anos em 29 de julho. Além de docente, é assistente social, militante do movimento negro e de mulheres negras, escritora e, também, gestora pública, com destaque para o cargo de Ministra da Igualdade Racial, exercido no Governo Federal entre os anos de 2003 e 2008.
Secom: Datas como o dia 25 de julho (Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, e Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra), 13 de Maio (“Abolição” da escravatura) e 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) são cada vez mais reivindicadas como datas de luta e não, necessariamente, de “comemoração”. O que a senhora pensa sobre a forma como o Brasil conta, até hoje, a história do povo negro e, em especial, a história das mulheres negras, através de seus marcos históricos, monumentos e instituições?
Nós vivemos num país que é bastante dúbio. Esses dias eu lia sobre a história de Nelson Mandela, do apartheid e da África do Sul. O apartheid era explicitamente um regime separatista. Era não, ainda é. As coisas acontecem lá ainda, mesmo que o apartheid tenha sido oficialmente derrubado. Mas aqui, no Brasil, não. A gente convive no mesmo bairro, na mesma escola, nas mesmas instituições, mas o separatismo existe na cabeça das pessoas e nas suas atitudes. Tem lugares que eu, como uma mulher negra, frequento, e sou a única e sempre a única, como restaurantes, teatro, aviões – embora pós-governo Lula os trabalhadores passaram a viajar mais de avião, isso é dado de pesquisa! Mas o separatismo tá arraigado, como já disse, nas cabeças e nas atitudes e nos símbolos.
Você falou de símbolos, marcos históricos e monumentos: a “Negra Nua”, na frente da Unilab (Campus da Liberdade, em Redenção-CE) é um caso bastante emblemático, porque, como vejo, explicita a ideia de uma mulher à disposição. As coisas têm mudado um tanto. Hoje em dia os negros estão mais presentes na telinha, ainda que em papéis pejorativos, lugar comum, e mesmo assim, mesmo ocupando os lugares, papéis tradicionalmente destinados aos negros, como empregadas domésticas, como serviçais, ainda concorrendo com os brancos, quando é pra ficar muito chique, uma empregada doméstica numa novela tem que ser branca.
Nas universidades mudou bastante a fotografia, no sentido simbólico. A Unilab é um caso à parte, onde a maioria é negra. Mas todas as universidades públicas no Brasil já passam a executar a lei de cotas. Então é muito comum, hoje em dia, ter alunos negros, indígenas, não na mesma proporção que seria o pagamento histórico, mas, de qualquer forma, já ampliou o número. Mas ainda permanece um hiato aí, mesmo tendo um acesso impulsionado por lei, na universidade pública: ainda cai no separatismo no mundo do trabalho. Hoje em dia, trabalho é uma coisa escassa pra população em geral, mas ainda prevalece um isolamento no mundo do trabalho, não apenas para inserção, mas também para mobilidade da população negra. Toda essa história tem sido enfrentada pelo movimento negro, pelos setores antirracistas na sociedade brasileira e mundial e nós estamos no século XXI com muitas mudanças, mas o fundamental ainda precisa ser tratado, que é nós enfraquecermos cada vez mais o racismo. Ângela Davis, que é um grande ícone de luta, costuma dizer que não basta contestar o racismo. Para ser efetivamente democrático, o mundo tem que ser antirracista, assim como antisexista. É uma luta que ainda tem muito pela frente.
“Nas universidades, mudou bastante a fotografia, no sentido simbólico. A Unilab é um caso à parte, onde a maioria é negra.”
Secom: Qual o lugar ocupado pelas mulheres negras, hoje, dentro da Universidade Pública? O que ainda precisa ser conquistado?
Também tem se alterado a condição vivida por negros dentro das universidades públicas, até porque a inserção é por concurso público. Mesmo antes da Lei de Cotas (Lei Nº 12.711/2012) já havia uma alteração desse dado histórico de racismo e separatismo no acesso às universidades, com um índice maior de inserção das mulheres negras como professoras (estou falando do ensino público superior). Dados de pesquisas demonstram que as mulheres negras têm um maior índice de escolaridade que os homens negros, mas ainda existe a dificuldade na mobilidade. As cotas para inserção no serviço público ampliam oportunidades, mas, estando dentro das universidades, a mobilidade ainda é um problema. Na maioria das universidades públicas brasileiras, o quadro de gestão, de direção, o quadro de ponta é exercido pelos brancos. A mulher branca tendo maior acesso que a mulher negra. E é uma raridade. No Brasil, nós comemoramos quando Nilma Lino Gomes foi reitora da Unilab. É uma exceção da regra. Essa história tem que mudar.
Do ponto de vista da ação e postura das mulheres negras dentro da universidade, tem um dado interessante que é a militância acadêmica. Nós temos no Brasil a ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), que é uma instituição suporte, apoio, para a militância acadêmica (…) Também a lei 10.639/2003 tem contribuído sobremaneira para ampliar estudos e pesquisas sobre o tema, entre outras questões, como os grupos de pesquisa, estudo e extensão.
Essa semana mesmo na Unilab tem o Julho das Pretas, que é um projeto que já está na quinta edição, uma forma de provocar o debate e iluminar mentes por dentro da universidade, em parceria com a sociedade civil. Foram conquistados muitos passos no sentido de avançar na democracia racial, mas ainda é necessário mais e mais. O déficit histórico é muito grande. Nós vivemos quase 400 anos de escravidão no Brasil; estamos há 130 anos da Abolição, uma abolição que aboliu, mas não incluiu; então, tudo isso conta de forma histórica negativa para a vida da população negra nas instituições. É preciso, sem dúvida, avançar, mais e mais.
Secom: A senhora tem uma carreira múltipla: assistente social, gestora pública, acadêmica, militante… Dentre tantos caminhos possíveis de atuação, tendo em vista sua vida pessoal e coletiva, que motivos a fizeram escolher a Unilab como local de trabalho?
Galguei esses espaços de atuação profissional, política, acadêmica, espaços que me diferenciaram muito do perfil do profissional de Serviço Social, no sentido mais comum. Eu terminei a graduação, era muito jovem, tenho 60 anos hoje e quando terminei tinha 23 anos. E, desde então, me dediquei a um trabalho um pouco mais político, voltado à educação popular, no sentido freireano. Trabalhei bastante tempo em ONGs, uma feminista, outra de formação política, fui gestora pública em municípios. Esqueci de falar: a vida profissional não foi nada diferente do que é esperado para uma criança ou jovem negra. Eu fui babá, trabalhei em serviços domésticos, em pequenos comércios, em linha de produção, como operária, tudo como manda o figurino.
A grande mudança foi quando eu entrei na universidade. Estudei na PUC (Pontifícia Universidade Católica – SP), nos anos 1980. Acho que foi a minha salvação. Fui aluna de professores muito do bem, muito politizados, como a deputada federal, que foi prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, a quem eu respeito muito. Vivi a universidade numa época em que o Brasil estava se encaminhando para a abertura política, tava forte a luta contra a ditadura militar. No início dos anos 80, lá por 83, 84, toda a movimentação “Diretas Já!”, depois vem a revisão constitucional, tudo isso contribuiu para que eu fosse me fortalecendo enquanto militante. A minha militância primeira foi no Partido dos Trabalhadores (PT), depois de ter terminado a graduação, porque eu tinha juízo e pouco dinheiro. Eu que pagava a minha universidade, sabia o quanto isso pesava no meu bolso, então mesmo tendo o chamado para uma movimentação política a partir do movimento estudantil ou do PT, do feminismo, do movimento negro, eu estudei. Eu ia pra sala de aula e estudava. Eu fui me tornar militante posterior à graduação, isso lá nos idos de 1984.(…) Me sinto uma profissional bastante satisfeita com os resultados das minhas buscas e da inserção político-acadêmica. Por acaso vim parar na Unilab, não por acaso. Eu escolhi vir para a Unilab.
Saí do governo federal de uma forma bastante conturbada, a partir de uma atuação bastante questionável dos setores midiáticos, envolvida em um escândalo no qual eu não tinha implicação nenhuma. Da forma como foi desenvolvida a denúncia do uso do cartão corporativo, a imprensa pegou pesado, a partir de um erro administrativo, julgando que eu havia feito desvio de verba federal. A verba era pequena, eram quatrocentos reais, eu não precisava disso. Mas ficou difícil de me manter no governo federal com esse escândalo.
Eu passei uns seis anos desempregada, vivendo de consultorias, pequenos projetos, e quando voltei a São Paulo, em 2008, tentei voltar para o meu doutorado, que havia parado em 2003 (…) Então, em 2013, voltei ao trabalho de maneira mais intensa e terminei o doutorado. Logo saiu o edital para o concurso na Unilab. Comecei a procurar concurso público porque estava cansada da vulnerabilidade em que eu me encontrava depois de ter atuado no governo federal, as dificuldades pra me recolocar no espaço de trabalho depois de um escândalo político… Então fui procurar concurso público e, à época, saiu o edital pra esta vaga que eu ocupo hoje. Tinham três concursos abertos em universidades públicas em localidades diferentes – e eu investi no concurso da Unilab. Conhecia o projeto da Unilab, na sua fase de estruturação e inaguração da universidade eu não acompanhei porque estava vivendo a fase hard da vida política, mas conheci o nascedouro desse projeto atuando no governo federal e considero uma experiência ímpar, uma universidade necessária para o Brasil. Em 2014 passei e comecei a trabalhar na Unilab Malês.
(…) Eu costumo dizer que estar na Unilab, dando aula numa sala de aula onde tem indígenas, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores rurais, africanos, homens, mulheres, a maioria negra, com as suas histórias, com as suas narrativas… Cada aula é um flash! Bastante interessante do ponto de vista de ir destruindo mitos, desigualdades, exclusões e fortalecendo as narrativas inclusivas.
Secom: Hoje, Matilde Ribeiro é um nome de grande referência para muitas mulheres que perseguem uma carreira acadêmica, um espaço de atuação como gestora ou mesmo na militância política. Quem são as referências que inspiraram Matilde no início de sua trajetória ou mesmo nos dias de hoje?
Desde a nossa ex-reitora, Nilma Lino Gomes, Lélia Gonzalez, Petronília Beatriz da Silva, dá pra listar muitas. Eu vou ficar por aqui, não quero cometer injustiças. Mas além dos nomes que eu citei, tem os seus propósitos, as suas mensagens, as suas posturas. E eu fui boa aluna no que diz respeito aos aprendizados políticos.
Me lembro de uma fala de Abdias do Nascimento, que faleceu há alguns anos e, se fosse vivo, teria mais de cem anos. Abdias me disse o seguinte uma vez: quando eu me tornei ministra – Abdias foi o primeiro gestor das políticas de igualdade racial no Brasil – e eu fui me consultar, perguntei a ele como é ser ministra dessa área. Entre tantas coisas que ele me falou, ele me disse assim: não se faz omeletes sem quebrar ovos. Na hora fiquei meio sem entender esse conselho, mas não demorou muito para eu entender que eu precisava meter os cotovelos e abrir os caminhos. Não existia caminho pronto e o Brasil não estava – não está! – preparado ainda para valorizar a política de igualdade racial como uma necessidade. Assim como Lula também, no discurso dele, na posse, na criação da Sepir (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial), também me deu um conselho. Ele me disse: peça licença aos seus colegas ministros apenas por educação, porque a partir de hoje você é tão ministra quanto qualquer um deles. Ele disse mais, disse “você será uma peregrina”. Justamente porque a função, o papel da Sepir era articular as políticas de igualdade racial, não era um órgão executor, e sim articulador de políticas. E convencer os demais dessas políticas não seria uma tarefa muito simples. Então ambos, Lula e Abdias, em seus conselhos, tavam me dizendo o caminho das pedras, da resistência e da persistência.
(…) A gente vai se tornando negro, negra, mulher, porque vamos construindo identidades.
E eu não tive, na família, referência política, militante, mas tive referência de honestidade, de altivez, de saber quem eu sou. Um dia, perguntando pro meu pai (o meu pai era o que se chama de mulato no Brasil – essa palavra é horrível). Mas o meu pai era um negro de pele clara, cabelo liso. Aí um dia eu perguntei pra ele: “Pai, você podendo passar por branco, por que você escolheu casar com a minha mãe (que era uma negra retinta) e conviver no mundo negro?”. Ambos já morreram. Ele, na sua sabedoria popular, voltou-se pra mim, olhou muito diretamente e falou assim: minha filha, depois das seis horas é noite. Não se confunde. Negro é negro, branco é branco. Embora ambos possam viver em harmonia, não aquela da democracia racial, do mito, mas viver em igualdade, eu acredito nessa possibilidade, hoje, no sentido mais individual, relacional entre duas pessoas. Mas do ponto de vista coletivo estamos muito longe da igualdade. Do ponto de vista estrutural, vivemos o racismo estrutural.
(…) Uma vez, tinha uns 19 anos, numa entrevista de emprego, eu estava me candidatando ao cargo de recepcionista, na Companhia de Engenharia de Tráfego, em São Paulo, e estava na fase de prestar vestibular (…) E uma entrevistadora, uma advogada de recursos humanos da empresa, ela me entrevistou e falou assim: “Ah, interessante, você gosta de estudar, você pretende fazer faculdade, você gosta de ler…”. Enfim, ficou me perguntando coisas e, no final da entrevista, ela olhou bem pra mim e disse “saiba que a vida é muito difícil, pra nós a vida é muito difícil”. Ela era negra e eu, nos meus 19 anos, fiquei meio sem entender o que ela tava querendo dizer. Não demorou muito pra eu entender, né?
A empresa, como qualquer outra, os engenheiros, os jornalistas, as funções mais de destaque eram destinadas às pessoas brancas. E os negros eram os serviçais, os office boys, as telefonistas, as recepcionistas, e eu como recepcionista ficava na porta de entrada, conhecia todas as pessoas da empresa e comecei a ver como é que era o jogo das relações reproduzindo a lógica do mito da democracia racial, que na época eu nem sabia o que era. Mas essa advogada, eu costumo dizer que ela foi o meu programa de ações afirmativas porque ela me estimulava muito, indiretamente, ela nunca me falou assim “você tem que ser militante”, não, ela sempre me via ali e dizia “ah, tá estudando? Tá estudando o quê?” (…).
Secom: Qual é a sua percepção sobre o papel da universidade pública e, em especial, sobre o papel da Unilab, dentro da reparação (ou correção) de injustiças sociais ou desigualdades históricas no nosso país?
A universidade pública tem um senhor papel, “senhor” com “éssi” e “érri” bem maiúsculo! Ou senhora… Senhora papel! Kabengele Munanga fala que a universidade é um campo de geração de oportunidades inclusivas. O mesmo diz Mandela, né? Mandela diz que a educação é a principal arma contra o racismo. Então, embora as universidades ainda sejam muito tradicionalistas e as ações voltadas à equidade racial e de gênero, através de pesquisa, extensões, currículos, ainda sejam iniciativas tímidas, muitas coisas têm acontecido pelo Brasil afora através dos Neaabis (Núcleos de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas), através dos grupos de estudo sobre questões afro-brasileiras e também indígenas, os próprios grupos de estudos tocados pelos pesquisadores e pesquisadoras, a política de cotas, a lei 10.639/03 (que torna obrigatória a temática “História e Cultura Afro-brasileira” no currículo oficial da rede de ensino), tudo isso tem causado uma efervescência muito positiva e a questão é que têm que ser cada vez mais institucionalizadas, essas ações. Não podem ser escolha de um ou outro professor ou professora. Não podem ficar à margem dos desejos e das escolhas individuais.
“Kabengele Munanga fala que a universidade é um campo de geração de oportunidades inclusivas. O mesmo diz Mandela, né? Mandela diz que a educação é a principal arma contra o racismo.”
Têm que ser programas institucionais voltados à sociedade como um todo, é nisso que eu acredito e acredito no empoderamento dessas experiências. Já citei o Julho das Pretas, na Unilab, como exemplo; tem também o projeto tocado pela professora Vera Rodrigues, “Mulheres negras resistem”, que é também uma ação de empoderamento na área da pesquisa e da ação acadêmica. Tem os estudos étnico-raciais e de gênero tocados por muitas pessoas, mas eu vou citar como exemplo, na área da Pedagogia, onde eu me encontro, os estudos e as ações tocadas pela professora Geranilde Costa e Silva e pela professora Rebeca Meijer, que dentro da Pedagogia defendem como referência teórico-metodológica a Pretagogia, uma política educacional e estratégia teórico-metodológica de afrocentralidade. O mesmo currículo da Pedagogia parte desse pressuposto dos estudos afrocentrados: significa quebrar a lógica europeizante, quebrar a lógica primeiro-mundista de ensino e olhar mais para as relações Sul-Sul, considerando África como uma referência nos ensinos da educação superior, a partir de programas que valorizam a educação pública com qualidade e gratuita, mas dentro dessa perspectiva o reforço à educação étnico-racial. Isto é muito importante e vai mudando o lugar das pessoas no mundo e, com isso, contribuindo para a superação de injustiças sociais e desigualdades históricas no Brasil.
Então, é a junção entre as perspectivas do indivíduo e do coletivo de maneira afrocentrada. Esta é uma referência que é bastante importante não só para a Unilab, mas para as universidades como um todo. Aí, de repente, as pessoas quando me ouvem falar devem pensar “Humm, ela só fala naquilo!”. Não! Não é só falar das questões étnico-raciais. É falar também e de maneira responsável e continuada. É falar com prioridade e agir com prioridade.
“Porque, ao longo da nossa vida societária, nós ficamos efetivamente de fora. Como eu disse: a Abolição aboliu, mas não incluiu. E os negros se somaram aos rincões do analfabetismo, dos sem-teto, dos sem trabalho, dos ‘sem’, sem qualquer coisa que significasse acesso a bens e serviços. Essa situação precisa ser mudada e a educação é uma grande porta de entrada e de saída.”
Tendo, necessariamente, também, que mudar essa relação entre a educação e o mundo do trabalho, o mundo da política, o cotidiano da vida social. A Unilab está cada vez mais cumprindo o seu papel e isso é muito importante.
Secom: De que tipos de políticas de promoção da igualdade racial as instituições públicas não podem abrir mão? Quais ações, ainda não implementadas, se fazem urgentes?
Nós temos, no Brasil, um pouco de tudo no sentido de comprovar a necessidade de ações inclusivas. Desde a Constituição, que afirma que racismo é crime inafiançável e imprescritível, coloca o caminho pras ações afirmativas, abre horizontes para a educação democrática… Então, não nos faltam leis. Ou até faltam, e a gente ainda tem que descobrir novos caminhos. Mas existe um arsenal jurídico bastante grande no sentido de garantir justiça social e racial e de gênero no Brasil. Quando eu falo racial e de gênero é porque estou considerando a importância do tripé gênero, raça, classe como estruturante da vida nacional. Mas cabe falar também da necessidade da superação da LGBTfobia, a necessidade de inclusão das pessoas portadoras de deficiência, os indígenas, enfim, a lista é muito grande, todas as lutas são muito importantes. Então, voltando: não nos faltam leis e, se faltam, nós temos que descobrir quais.
A vida institucional na Unilab, por exemplo, torna bem possível o caminho da promoção da igualdade racial – a Unilab como exemplo, mas tem tantas outras instituições! Então, a sociedade brasileira e as instituições não podem abrir mão do exercício desses direitos.
“(…)Eu já citei a lei 10.639, que obriga o ensino da História africana e afro-brasileira no ensino público e privado; a lei 11.645, que obriga o ensino da cultura indígena. A lei 12.711, que é a lei das cotas… Enfim: é um arsenal bastante grande e faltam, efetivamente, ações continuadas, ações comprometidas. Eu já disse: não com foco nos indivíduos, mas pelas estruturas das instituições; não só as de ensino, mas no campo da política pública.”
Cabe falar da questão étnico-racial, de gênero, LGBTQIA+, cabe tratar dessas questões em todas as áreas da política pública. Cabe! Cabe falar a partir da lógica financeira, da lógica do Ministério da Fazenda, cabe falar nas políticas regionalizadas, cabe falar no mundo do trabalho. Falar, não: não só falar. Cabe agir. Cabe efetivamente o desenvolvimento de programas continuados visando a inclusão. Na saúde, no turismo… Poderia listar todas as áreas da política pública com caminhos para a inclusão étnico-racial, de gênero, LGBTQIA+, do ponto de vista histórico, a necessidade histórica dessa inclusão. Então, o que falta, efetivamente, é a continuidade dos processos.
Nós estamos vivendo um momento muito sério no nosso país, de desmonte das políticas públicas e das políticas consideradas sociais para o atendimento à vida da população que precisa do braço do Estado para sobreviver. Os efeitos da pandemia estão muito severos para aqueles vivem discriminações históricas. Tem se ampliado o número de pessoas morando na rua, a fome. O combate à fome é uma urgência no nosso país. Então é arregaçar as mangas e parar de crer em falácias como que “a Covid é só uma gripezinha”, que vai passar; que é bobagem ensinar Sociologia, Filosofia nas universidades (…).
(…) Então, desculpe o discurso, mas é preciso ter continuidade nas políticas públicas e monitorar os seus resultados visando a inclusão sócio-racial e o enfrentamento das injustiças históricas!
*** Algumas imagens dessa entrevista foram retiradas do Trabalho de Conclusão de Curso de Bruna Aparecida Thalita Maia, que concluiu o Bacharelado em Humanidades no Campus dos Malês (BA) em 2016 defendendo o trabalho “Matilde Ribeiro: a minha história é talvez igual a tua – uma trajetória de militância e empoderamento da mulher negra”. A obra está disponível na íntegra no Repositório Institucional do Sistema de Bibliotecas da Unilab (Sibiuni).
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